"No Outro dia liga-me (via kolmi, evidentemente) o meu filho mais velho, com dezasseis anos, que foi de fim de semana alargado com uns amigos para Madrid. A conversa não fazia grande sentido para mim, mas para ele de certeza que fazia, dada a enorme decalage que existe hoje entre o português e a gramática usados pelos pais e o português e a gramática usados pelos filhos.- Mãe, o Multibanco que tu me deste não está bom.- Não está bom como? Tem funcionado perfeitamente desde que saíste de Lisboa.- Pois, mas agora estou aqui em Madrid, tenho fome, quero comer, preciso de apanhar a camioneta para Lisboa, e ele não está bom. O bonequinho diz que ele não está bom.- Ó meu grande inconsciente, e tu por acaso não gastaste já todo o dinheiro que eu pus na tua conta?-Não, mãe. Juro por Deus.- Deixa lá Deus descansado. Não pode ser essa caixa de multibanco que está fora de serviço?-Ó mãe, mas eu já fui esta manhã a bué caixas, já tentei bué cenas, mas isto deixou de funcionar, tens que ver o que é.- Então e não podes pedir dinheiro emprestado a um dos teus colegas para umas bolachas e um bilhete de camioneta e a gente cá faz contas e eu, entretanto, tranquilamente, vejo o que se passa?- Oh mãe, eles já estão os dois sem dinheiro. Só eu é que ainda tinha. Conseguem convencer-nos de tudo, os nossos filhos. Eu, que tinha planeado fiçar calmamente em casa a trabalhar com as janelas todas abertas para fazerem uma saudável corrente de ar, lá me atravessei pelo meio do calor da tarde para ir à minha agência. Com tanto azar, nem o gerente nem o meu gerente de conta lá estavam. Àquela hora, estava só mesmo um rapazinho estagiário colocado ali durante o Verão. Mas adiante, bolas, que o meu filho precisa de comer e de apanhar a camioneta. O jovem estagiário faz-me um grande sorriso e eu lá lhe expliquei a situação misteriosa do cartão que de repente deixou de funcionar em Espanha. O jovem pede-me o nome do miúdo e o número da conta dele, e depois começa a fazer clics com o rato. Às tantas, depois de inspeccionar atentamente uma página de dados, faz um sorriso daqueles mesmos muito malandros. Minha senhora, diz ele, o seu filho não está em Madrid. Está em Portimão. O quê? Mas ele telefonou-me de Madrid ainda há cerca de meia hora! E como é que a senhora sabe que foi mesmo de Madrid que ele telefonou? Então, pois se fui o que ele me disse... E o estagiário, como se fosse ele que tivesse lições para me dar a mim:- Mas a senhora não pode ser assim tão crédula com filhos adolescentes de dezasseis anos. Olhe bem para isto. Vira o monitor na minha direcção e aponta para o final de uma das colunas com a ponta da lapiseira. Está a ver estas quatro entradas? São todas de hoje de manhã, e, de facto, a última foi há cerca de uma hora. Quatro multibancos diferentes de onde ele tentou levantar dinheiro, todos em Portimão. Ontem, olhe aqui. Jantou neste restaurante chamado Superpeixe e pagou uma conta que parece claramente de duas pessoas. Isto confirma-se se formos à compra imediatamente anterior, às 19 do mesmo dia, um biquíni brasileiro da loja Poucaroupa. Aliás, bastaria olharmos para as dormidas: duas noites na pensão Oásis, quarto duplo, cama de casal. Ah, e repare no bilhete de camioneta que ele comprou na sexta-feira: está aqui claramente indicado que é de ida e volta. E oiça, minha senhora, não se passa nada de errado com o multibanco dele. O rapaz apenas já gastou todo o dinheiro que a senhora lá pôs para ele. Mas tem um bilhete para voltar hoje ao fim da tarde. Se lhe veio com essa conversa, provavelmente é porque ainda quer comprar mais uma prenda de luxo para a namorada antes de se vir embora. Qual namorada? Então, minha senhora? Cama de casal numa pensão, biquínis brasileiros, jantarinhos para dois... é evidente que o seu menino foi visitar uma namorada a Portimão e lhe contou uma história sobre ir com dois amigos a Madrid! Bom. Claro que o meu rapaz ouviu ali pela medida grande. Mas a mim, francamente, o que me incomoda não são estas patetices de manual que os rapazes fazem. O que realmente me incomoda é pensar que, hoje em dia, até um estagiário de um banco, com pouquíssima informação à partida, pode em dez minutos saber precisamente onde estamos, onde estivemos, o que é que fizemos, tirar ilações e fazer juízos de valor. É o lado escuro do admirável mundo novo electrónico, em que todos tendemos a não pensar, mas com o qual todos perdemos completamente a privacidade."
TEXTO DE CLARA PINTO CORREIA
Sem comentários:
Enviar um comentário